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Sem ideia para crônica

Sem história para um filme, o diretor decidiu fazer um falando sobre esse momento de crise criativa.

Redação
Por: Redação
16/05/2020 às 14h40 Atualizada em 16/05/2020 às 14h51
Sem ideia para crônica

Toda segunda-feira é dia de entregar a crônica para o jornalista Carlos Alexandre, responsável pelo portal de notícias CNA7, no qual tenho coluna semanal. Hoje é terça-feira, duas horas da tarde e estou, sem sucesso, tentando decidir um tema para a crônica que já deveria estar pronta.

Foi quando me veio à mente o filme que assisti ontem à noite: Oito e meio, clássico de Frederico Fellini. O nome do longa merece uma explicação. Oito porque este seria o oitavo filme de Fellini e meio porque ele produziu dois curtas-metragens. Sem história para um filme, o diretor decidiu fazer um falando sobre esse momento de crise criativa.

Claro que não sou pretenciosa ao ponto de achar que esta crônica será uma obra-prima, mas acredito que é uma oportunidade para refletir sobre a escrita que, como podem perceber, não é fácil.

José Marques de Melo, em seu livro Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro, diz que a crônica é um gênero jornalístico que se alimenta dos fatos do cotidiano. Um texto mescla linguagens, como jornalismo e literatura, e suas classificações variam de autor para autor. Mas, apesar de parecer simples falar sobre o cotidiano, acreditem: não é. Não se trata apenas de elencar uma sucessão de fatos. O texto carrega consigo o que nós autores pensamos sobre a vida e, muitas vezes, não de maneira explícita.

Bem, definição dada, ou mesmo um arremedo dela, vamos lá. Ao decidir que escreveria uma crônica sobre não conseguir escrever uma crônica, tive de voltar ao dia de ontem: segunda-feira. Tenho um alarme que toca às nove da manhã me lembrando do meu compromisso com o portal CNA7. Aí você pensa: “e precisa de alarme?”. Sim, no meu caso precisa, especialmente em tempo de pandemia em que relógio e calendário perderam um pouco a utilidade.

Ao ouvir o alarme, sentei para escrever. Tinha uma ideia do tema que me surgiu no fim de semana diante de um episódio e até comecei a primeira frase. Era sobre insegurança. Como a gente se deixa abater pelo que os outros falam; quando nos falta segurança para seguir em frente a despeito das circunstâncias etc. Não passei da primeira frase.

Resolvi então fazer pedido no mercado. Eu poderia estar sem ideias para a crônica, mas ainda precisava alimentar meu corpo. Foi quando pensei em fazer um bolo de cenoura. A quarta tentativa em um pequeno espaço de tempo. Entendam: eu nunca havia feito bolo de cenoura antes e resolvi aprender durante o período do isolamento social. Tentei três vezes, duas receitas, sem sucesso. Nunca me disseram que o bolo de cenoura é um dos mais difíceis, que ele tem tendência a ficar cru ou solar. Descobri isso no Youtube, mas não desisti. E resolvi então escrever uma crônica sobre perseverança. E pensando sobre isso percebi que eu até poderia estar sendo perseverante em aprender a fazer o bolo (ou seria teimosia?), mas em outras áreas da minha vida, eu desistiria fácil.

Um exemplo: há alguns meses comprei um teclado, decidida a tocar novamente. Sim, quando era mais nova eu tocava piano e cheguei a dar aula de teclado para iniciantes. Mas voltar a tocar depois de tanto tempo não foi fácil. Além disso, ainda falei pra mim mesma que andava sem tempo, que tinha outras prioridades. O fato é que eu desanimei. Talvez por causa da idade, não sei, mas ler a partitura e fazer com que mão esquerda e direita tocassem de forma harmônica estava sendo complicado. Isso me desanimou ao ponto de colocar o teclado de lado.

E eis que, pensando na crônica sobre o bolo de cenoura e minha perseverança (ou teimosia), decidi tirar o teclado da caixa e lá fui eu, novamente, ensaiar a música tema da série Game of Thrones. Detalhe: gosto de tocar apenas temas de filmes e séries... Cheguei à conclusão de que não preciso tocar a versão mais difícil da música, aquela que os grandes pianistas tocam. Posso aprender a versão fácil, muitas vezes elaborada para crianças, e tudo vai estar bem. Não posso e não devo me comparar aos outros. Porque a gente se comparar é o primeiro passo para deixar coisas, como aprender um instrumento, de lado. Eu não estou praticando para me tornar a versão feminina de Richard Clayderman. Quero apenas ser uma versão minha que toca meus temas de filmes e séries favoritos. Só isso.

Encerrei a noite de segunda-feira sem a crônica, mas assisti ao filme do Fellini que acabou por inspirar este texto. Não foi um dia totalmente perdido então.

Amanheci hoje, terça-feira, já pensando na crônica. Mas enquanto a ideia não vinha, fui cuidar da casa, roupa e fazer comida que ficou pronta às três da tarde. Agora pensando sobre o tempo gasto na cozinha, eu me pergunto se não estava enrolando para adiar a escrita da crônica. Depois do almoço, ainda sem ideias, finalizei o curso online da roteirista e diretora Anna Muylaert (Durval discos; Que horas ela volta?). Superindico. Especialmente para quem pensa em escrever para cinema e TV. Foram dezenove anos de trabalho para que o filme Que horas ela volta? ganhasse as telas do cinema. DEZENOVE. E as vezes a gente desanima depois de um ano ou dois anos sem alcançar um objetivo, qualquer que seja.

Acho importante fazer cursos e ler livros (especialmente biografias) para conhecermos a trajetória de pessoas comuns, como a gente. Saber que a maioria ralou pra caramba, e alcançou seu objetivo por que perseverou. Olha já! E não é que eu acabei voltando para o tema que tinha pensado para esta crônica mas que eu não conseguia escrever: perseverança?

Foi com perseverança que chegamos ao final desta crônica, a despeito do desespero que bateu ao achar que não ia rolar nada esta semana. Já ao final do filme de Fellini, o diretor Guido (interpretado por Marcello Mastroianni) não conseguiu produzir seu longa. Uma pena. Mas ele inspirou este texto. Ainda bem

 

Professora Doutora Graciene Siqueira 

Graciene Silva de Siqueira

Graciene Silva de Siqueira é professora do curso de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas em Parintins desde 2009. Possui mestrado em Ciências da Comunicação (UFAM/Manaus) e doutorado em Letras (Mackenzie/SP). Trabalhou onze anos em redações de jornais como A Crítica, A Notícia, Diário do Amazonas e O Estado do Amazonas, nas funções de repórter, colunista e editora.

Apaixonou-se por filmes quando trabalhou em uma videolocadora nos anos 1980. Escreveu roteiro de curtas-metragens premiados no Amazonas, como Telefone sem fio, Além da vida e Sonhos, e outros exibidos em festivais, como Mormaço e Próximo ponto. Pesquisa e coordena projetos relacionados à Sétima Arte na Ufam. Em seus planos estão escrever o roteiro de um longa-metragem e um livro de crônicas.

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