Não sou muito chegada a filmes de terror. O que dirá então de séries do gênero. Mas como explicar então meu fascínio pela série A maldição da residência Hill (The haunting of Hill house), que estou revendo durante esse período de isolamento social? Dirigida por Mike Flanagan, este especialista em obras de terror, a série está disponível no catálogo da Netflix há dois anos e sobre ela afirmo (e muitos críticos concordam): a trama é mais sobre relações humanas do que sobre fantasmas. Baseada na obra homônima de Shirley Jackson, a história da família Crain já foi adaptada quatro vezes: duas para o cinema e duas para a TV.
A narrativa é centrada nos cinco irmãos Crain: os gêmeos Luke e Nell, Shirley, Steven e Theo. Desenvolvida em duas linhas temporais (a infância das crianças na mansão Hill e a vida adulta), a história mostra como eles lidam e tentam superar os traumas da infância, sendo alguns relacionados a eventos sobrenaturais na mansão Hill e outros relacionados à própria história da família. Após o suicídio da esposa, Olívia, o pai das crianças, Hugh, as leva para viverem com uma tia. Assim, além da perda da mãe e do impacto dos eventos sobrenaturais que vivenciaram na casa, as crianças, são obrigadas a lidar com a ausência do pai e a suspeita de que ele teria sido responsável pela morte da esposa. Essas situações vão defini-los e, consequentemente, a relação entre eles.
Claro que estou sendo sintetizando, afinal é uma série de dez episódios, mas o que quero destacar, como citei anteriormente, é a relação entre os irmãos que, para mim, é o ponto alto da série. Mais do que uma série de terror, A maldição da residência Hill é um drama familiar. E dos melhores, tanto do posto de vista narrativo quanto técnico. Achei genial a ideia de desenvolver a trama em duas linhas de tempo, onde acompanhamos os personagens em sua inocência infantil, com sonhos e expectativas, e os primeiros problemas que vão enfrentar e que reverberarão em sua vida adulta.
A gente, que tem irmãos, reconhece muitas das situações vivenciadas pelos Crain: as brincadeiras juntos, a briga por questões bobas, o filho mais velho sendo chamado à responsabilidade de cuidar dos mais novos, a descoberta da morte, a curiosidade sobre si mesmo e sobre o mundo, entre outros aspectos. Algumas dessas situações vão moldar essas crianças ao ponto de criar um abismo na relação entre elas quando se tornarem adultos.
Estamos falando de ficção. Mas também da vida real. E nos perguntamos: por que tudo não pode ser como quando éramos crianças? A gente brigava, pra mais à frente fazermos as pazes; a gente esquecia as diferenças quando os risos das brincadeiras invadiam o ambiente; a gente se sentia seguro apenas diante da ideia da presença dos pais; a gente se via como eternos companheiros na descoberta do mundo. Parecia tudo mais fácil quando analisado pelos nossos olhos de crianças.
Mas, então, cada irmão toma o seu rumo, constrói sua própria família. Eles se esquecem como se amavam, como era divertido estarem juntos. Surgem então questões como: em que momento da vida esqueceram como amavam a companhia um do outro? Há um momento de ruptura, ou tudo aconteceu naturalmente? É esse o curso da vida, ou é algo que pode ser modificado?
Essas reflexões sobre a série e, consequentemente sobre as relações entre irmãos, surgiram a partir da conversa com uma amiga. Ela tem lidado com diferenças maiores do que muitas outras famílias. Apesar das palavras de conforto que eu possa falar, é uma sombra que ela carrega há alguns anos. E eu entendo pois, assim como vemos em obras de ficção, a exemplo da série em questão, as relações entre irmãos podem ser complexas. E cheias de rupturas. Só acho que não deveria ser assim. Claro que a gente muda, as circunstâncias mudam, as relações mudam. Mas estamos falando de família. Será que ela deveria mudar tanto assim? Questões econômicas, políticas, pessoais, deveriam importar mais do que laços de sangue?
A propósito: tenho uma relação saudável com meus irmãos. Poderia ser melhor, com certeza. Mas ainda vejo alguns fragmentos de nossa infância em nossa vida adulta. Acredito que isso é mais do que muitos vão ter. Sei lá... Talvez devêssemos continuar como crianças quando não deixávamos nosso eu adulto estragar tudo....
Graciene Silva de Siqueira
Graciene Silva de Siqueira é professora do curso de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas em Parintins desde 2009. Possui mestrado em Ciências da Comunicação (UFAM/Manaus) e doutorado em Letras (Mackenzie/SP). Trabalhou onze anos em redações de jornais como A Crítica, A Notícia, Diário do Amazonas e O Estado do Amazonas, nas funções de repórter, colunista e editora.
Apaixonou-se por filmes quando trabalhou em uma videolocadora nos anos 1980. Escreveu roteiro de curtas-metragens premiados no Amazonas, como Telefone sem fio, Além da vida e Sonhos, e outros exibidos em festivais, como Mormaço e Próximo ponto. Pesquisa e coordena projetos relacionados à Sétima Arte na Ufam. Em seus planos estão escrever o roteiro de um longa-metragem e um livro de crônicas.