Eu e minha filha estamos separadas há quase dois anos: eu trabalhando em Parintins (AM) e ela estudando em Florianópolis (SC). Pensando geograficamente, ambas estamos em ilhas. Interessante... Mas não é para falar sobre geografia que estou escrevendo esta crônica. Ela foi provocada pela lembrança do que costumamos fazer juntas quando nos encontramos.
Nossa marca registrada é combinar um filme ou um episódio de série. Esse momento surgiu especificamente no período em que fomos morar em Parintins, quando Júlia tinha uns dez anos. Enquanto longe, temos o hábito de sugerirmos um filme ou série uma à outra mas que, por conta das atividades do dia a dia, nem sempre conseguimos dar conta de assistir. Talvez até inconscientemente a gente evite assistir antes de nos encontrarmos e assim termos mais um motivo para ficarmos juntas. Não é algo que fazemos todos os dias, até porque programamos outras atividades. Mas quando acontece é especial. Tem toda uma preparação: arrumar o sofá ou a cama, fazer pipoca e deixar o filme ou série já no play. E pode ser no celular, no notebook ou na TV – mais importante do que o meio é o momento. A pipoca quem faz é a Júlia. A dela é a melhor, com certeza.
Às vezes, acontece de uma já ter assistido ao filme ou série e a outra ficar angustiada querendo saber o que vai acontecer – os famosos spoilers. Passamos o tempo inteiro fazendo perguntas que não serão respondidas. Faz parte do nosso ritual.
Pensando sobre isso refleti na importância desses momentos entre pais e filhos. Fui buscar na memória momentos assim com meus pais. Do meu pai lembro dele nos levar a banhos, no Igarapé da Ponte da Bolívia, em Manaus – hoje nem sei o que restou dele – e também nos jogos do seu time do trabalho, aos fins de semana. Não foram tantos passeios e jogos, mas lembro dos poucos que pudemos ir. Não tínhamos transporte próprio e dependíamos dos fins de semana que o papai podia ficar com o carro da empresa. Ah, e tem ainda a taberna que ele montou na rua Barcelos, reduto da família Siqueira. Ele nos deixava jogar sinuca quando não havia clientes.
Da minha mãe, lembro dos lanches de fim de tarde – antes de ela começar a trabalhar em três cadeiras do magistério - onde ela reunia a família, incluindo o avô Abel. O suco (Ki-Suco em pó) era servido em um bule de alumínio, hoje com cabo quebrado, mas que desconfio ainda estar entre os utensílios de cozinha da minha mãe. Os sabores servidos com frequência eram de uva e morango, acompanhados normalmente de pão com manteiga ou filhós (um bolinho de chuva tamanho grande). Este último, aliás, ainda é minha iguaria preferida e, sempre que vou à casa dos meus pais, peço pra minha mãe fazer. Quando tinha um tempo livre, mamãe também costurava roupa. Especialmente para mim e minhas duas irmãs, que ganhávamos o mesmo modelo, mas em cores diferentes. Acredito que foi essa lembrança que me inspirou a aprender a costurar e fazer roupas para Júlia, assim como acredito que foram as lembranças da minha avó Zilda e sua máquina de costurar, ainda de pedal, que inspiraram minha mãe.
Enquanto escrevo, as imagens de tais momentos vêm com nitidez à minha mente. Elas foram registradas há quase quarenta anos, mas é como se eu pudesse sentir a mesma emoção daquele momento e também o gosto do suco e cheiro do filhós. Estas são apenas algumas das lembranças que tenho com meus pais. Há mais, com certeza, e sou grata a Deus por elas. Poderia ainda falar das surras que eu e meus irmãos levamos, algumas engraçadas (hoje, claro), mas estas renderiam outras crônicas.
Essas lembranças têm gosto e têm cheiro e são importantes para nos tornarmos quem somos. E mais ainda: para nos lembrar de criarmos tais momentos com nossos filhos porque estes ficarão com eles – e também conosco -, mesmo depois, quando não pudermos mais estar juntos. Seja geograficamente, seja fisicamente.
Graciene Silva de Siqueira
Graciene Silva de Siqueira é professora do curso de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas em Parintins desde 2009. Possui mestrado em Ciências da Comunicação (UFAM/Manaus) e doutorado em Letras (Mackenzie/SP). Trabalhou onze anos em redações de jornais como A Crítica, A Notícia, Diário do Amazonas e O Estado do Amazonas, nas funções de repórter, colunista e editora.
Apaixonou-se por filmes quando trabalhou em uma videolocadora nos anos 1980. Escreveu roteiro de curtas-metragens premiados no Amazonas, como Telefone sem fio, Além da vida e Sonhos, e outros exibidos em festivais, como Mormaço e Próximo ponto. Pesquisa e coordena projetos relacionados à Sétima Arte na Ufam. Em seus planos estão escrever o roteiro de um longa-metragem e um livro de crônicas.